domingo, 22 de novembro de 2009

Os navios existem e existe o teu rosto
encostado ao rosto dos navios.
Sem nenhum destino flutuam nas cidades,
partem no vento, regressam nos rios.

Na areia branca, onde o tempo começa,
uma criança passa de costas para o mar.
Anoitece. Não há dúvida, anoitece.
É preciso partir, é preciso ficar.

Os hospitais cobrem-se de cinza.
Ondas de sombra quebram nas esquinas.
Amo-te... E entram pela janela
as primeiras luzes das colinas.

As palavras que te envio são interditas
até, meu amor, pelo halo das searas;
se alguma regressasse, nem já reconhecia
o teu nome nas suas curvas claras.

Dói-me esta água, este ar que se respira,
dói-me esta solidão de pedra escura,
estas mãos nocturnas onde aperto
os meus dias quebrados na cintura.

E a noite cresce apaixonadamente.
Nas suas margens nuas, desoladas,
cada homem tem apenas para dar
um horizonte de cidades bombardeadas.

Eugénio de Andrade, As Palavras Interditas (1951)

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Quero que faças trabalho de detective sobre a minha invisibilidade.

domingo, 11 de outubro de 2009

[...]Os dedos dos pés nus encolhiam-se com medo da temperatura do chão, com medo de eventuais obstáculos maciços, com
tanto
medo de se denunciar na sua incapacidade.
- Estás a ir bem – tranquilizou-a, no preciso momento em que o seu joelho embateu sem trégua na esquina incisiva de um móvel.
Baixou-se lentamente. As suas mãos assentaram naquilo que parecia o tampo de uma mesa e ela deixou-as deslizar ao longo da superfície lisa e estéril, dobrando o tronco – num gesto de desistência ou de avidez? –, até que encontrou um objecto frio e redondo –
um copo?
- De certeza que isto não é tudo um equívoco? – e de repente sentiu uma madeixa do seu cabelo revoltear.
- Não sei como podes acreditar em tamanho despautério.
Sorriu. Mas não reconhecia aquele toque no seu cabelo, aquele aroma escorregadio. E as ruínas daquele toque e daquele aroma eram tudo o que tinha. Não se
reconhecia.
- Ainda por cima usas palavras difíceis. Sinto-me impressionada.
Esperou por outro toque fugaz, talvez a respiração no seu pescoço, mas
nada.
Nada que lhe dissesse para onde a seguir. Só aquela muralha indecifrável sob a sua pele e que as suas mãos sonâmbulas não podiam atravessar, só percorrer sem sair do mesmo sítio.[...]

[...]Não devia ter-se deixado progressivamente ficar nas águas mornas do silêncio. Mas era tão tentador… Era tão… autêntico. Os colegas viram-no rasgar o oceano insondável passo a passo e não se coibiram de lhe fazer saber o quanto isso lhes desagradava, lembrando-lhe que não lhe fazia bem isolar-se daquela maneira, mas ele já mergulhava e os sons das suas vozes chegavam até ele distorcidas pela densidade da água. Sempre achara que seria perfeitamente capaz de sobreviver incólume a várias semanas na solitária, se alguma vez fosse preso, por isso… Que mais podia fazer? As palavras tinham-se tornado companheiras supérfluas para todas as coisas que tinha visto, [...] todos os estilhaços que desfiguraram todas as pessoas de quem nunca se despedira. As palavras tinham-se tornado mais arsenal de guerra porque nunca, nem que passasse o resto da vida a tentar, iria conseguir mostrar aos seus colegas aqueles lugares de angústia que trilhava dentro de si e o mantinham naquelas trevas. E alguém lhe dissera uma vez que não havia agressividade maior que a agressividade do silêncio, por isso que outra forma melhor de protestar em alto e bom som perante aquelas pessoas que não se importavam, que nem sequer pensavam, inacessíveis nas suas fortalezas de convicções? Talvez as obrigasse a reflectir… Talvez durante esse tempo encontrasse maneira de conter o tumulto estrangulador que se convulsionava no seu âmago, recusando nomes, recusando compreensão, recusando calmantes, agitando num remoinho tudo de que era feito, mudando tudo de sítio, deixando tudo irreconhecível. Tinha medo de abrir a boca para fazer uma tentativa humilde de se projectar no concreto e não se conseguir controlar, começar a abrir rachas, e nunca mais parar. Tinha medo da força da corrente, de ser arrastado e submerso para sempre. Tinha tanto medo de perder a cabeça… roçar a loucura… e descobrir que era irreversível. [...] Podia ser que com o tempo as pessoas entendessem, podia ser que com o tempo as águas baixassem, a terra absorvesse pouco a pouco a magnitude com que fora atingida e ele pudesse voltar a aprender tudo do início, a reconstruir-se a si próprio a partir daqueles pontinhos de derrocada. Mas por agora não. Por agora ainda era demasiado cedo, ainda havia de mais para absorver. Ainda não conseguia processar as más notícias recebidas, não conseguia deixar de visualizar aquelas imagens atrozes dos corpos irreconhecíveis daquilo que fora tão real, não conseguia processar a rapidez, a aleatoridade e o absurdo de tudo. Será que um dia também aquelas imagens lhe iriam parecer fotografias tiradas há cem anos numa outra vida? Quem lhe dera que pudesse esquecer aqueles últimos meses da sua vida, da mesma forma que já quase esquecera o rosto da mulher. Quem lhe dera que fosse assim tão fácil… Quem lhe dera esquecer as coisas más que lhe tinham acontecido ultimamente.[...]

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

sábado, 26 de setembro de 2009

Pain is useless and debilitating [...] when it is telling us that there is something dreadfully wrong that we can do nothing about.

why zebras don't get ulcers

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

um dia beijo-te ao som
do vermelho tinto que trazemos
no sangue mesmo que não sintas
fervilhar no teu os meus lábios
dir-te-ão mais que as palavras
e juras que carrego nas
veias.

um dia beijo-te quando tiver
coragem de dizer sem palavras
as palavras que sinto na minha
pele ansiosa pela tua
- os poros e pêlos e fendas
e poesia que os nossos dedos
calejados manchados de tinta
podem escrever.

um dia beijo-te
por não ter palavras.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

[...]
Junto ao portão, fez-me parar e perguntou: «Aonde vais, senhor?» «Não sei», respondi, «para longe daqui, para longe daqui. Sempre para mais longe daqui, só assim poderei chegar ao meu destino.» «Então sabes qual é o teu destino?», perguntou. «Sim», respondi eu, «ouviste o que eu disse: "longe-daqui", é esse o meu destino.»
[...]

A Partida, Kafka

domingo, 6 de setembro de 2009

KHAWAJAH NASR AL-DIN
O relógio de Nasrudin vivia marcando a hora errada.
- Mas será que não dá para tomar uma providência? - alguém comentou.
- Qual providência? - falou o Mullá.
- Bem, o relógio nunca marca a hora certa. Qualquer que seja a providência já será uma melhora.
Nasrudin deu uma martelada no relógio. O relógio parou.
- Você tem toda a razão - disse ele. - De fato, já dá para sentir uma melhora.
- Eu não quis dizer "qualquer providência", assim literalmente. Como é que agora o relógio pode estar melhor do que antes?
- Bem, antes ele nunca marcava a hora certa. Agora, pelo menos, duas vezes por dia ele vai estar certo.
Moral: É melhor estar certo algumas vezes do que jamais estar certo.

sábado, 15 de agosto de 2009

[...] Sentia todo aquele electromagnetismo a exercer pressão sobre ela, a abrir linhas imperceptíveis sob o chão que pisava, tantas que se poderia perfeitamente perder ali, num mundo subterrâneo repleto de hieróglifos donde nunca mais teria de regressar – e onde nunca mais teria de se debilitar a pensar em todas as formas e em todas as circunstâncias de autopreservação. O abstracto infinito de efabulações e respostas àquelas perguntas era uma rede de túneis mal iluminados que permitiam o esquecimento, que lhe concediam tréguas. Mas estaria mesmo à procura de uma oportunidade de baixar as armas? [...]

domingo, 9 de agosto de 2009

[...] Eles haviam mudado, aquilo de que precisavam havia mudado, tinham ido em direcções diferentes à procura do que precisavam, tinham-se afastado, e parecera uma solução tão boa para as mossas incandescentes que se acomodavam debaixo dos ossos. Deixaram de ter as mesmas metas futuras, os mesmos consolos diários. Céus, provavelmente nem tinham as mesmas memórias de todos aqueles anos em que se conheceram, as mesmas… referências ao longo do percurso. E teriam de ir caminhando armados de detectores de metais a olhar para o chão, no mais obsceno silêncio cismado, numa caça ao tesouro ingrata pois nunca iriam concordar com o sítio onde ficara o momento, as palavras certas, a cumplicidade enterrada. [...]

domingo, 19 de julho de 2009

[...]
I drove past your house last night
I'm not proud of it
But I can't help but wonder
How many days or years
I have left

quinta-feira, 16 de julho de 2009

A salvação e o martírio do homem consiste precisamente no facto de levar uma vida aberrante mas poder toldar de tal maneira a consciência que não nota a calamidade da situação.

Lev Tolstói, A Sonata de Kreutzer

Sometimes, I call her names that are not her name. And she says, "That is not my name."
And again I say the name that is not her name. Don't touch me, she says. So I don't touch her, or I say no names and touch her. But still I think of the name that is not her name. But your roof does not fall. Maybe I need to say her name.
Tomorrow, I will break your roof.
Your kitchen chairs are still strong and mine are piles of sawdust. I want you to have dust for spoons and dirt in your closets, clothes that become string on you. Everything that is you to break and disintegrate. Everything that you touch. Your windowsills, the steps that lead to your door, all to fall apart. And when you touch him, his bones to break, the splinters into his pancreas, into his lungs, pelvic bone to snap, the spilling blood to rust. For him to rot and decay and fade.

domingo, 28 de junho de 2009

O sentimento de perfeição serena não a abandonara com o afastamento, ao contrário do que calculara. Se fosse possível até se intensificara. Mas apercebeu-se que deixara passar mais uma oportunidade única, daquelas que demoram anos para aparecer. Quais eram as hipóteses, e quando de novo as circunstâncias se conjugariam como se tinham conjugado ali? Por momentos pensou se a sua decisão de se ir embora não teria sido mesmo uma forma inconsciente, mas deveras intencional, de intensificar aquela percepção de certeza e harmonia cósmicas, de cristalizar a pureza de tudo fazer sentido. Mas rejeitou esse pensamento instintavemente ao sabê-lo errado. E sabia-lo errado porque tinha uma vontade enorme de se virar e de se saber seguida... Lutou um pouco com a ideia, com o medo do ridículo, antes de espreitar cautelosa e discretamente por cima do ombro. Ninguém a seguia.

quarta-feira, 10 de junho de 2009

domingo, 10 de maio de 2009

«If I'm understanding quantum probability correctly - and please, tell me if I'm not - then the more ways there are to achieve a singular outcome, the less likely that singular outcome will actually happen.»

quarta-feira, 6 de maio de 2009

«Certo dia, estava a pregar um prego na parede para pendurar um quadro. Não o fiz com muito jeito e em vez de bater no prego bati no dedo. A minha mão direita pousou imediatamente o martelo e cuidou da minha mão esquerda. A minha mão direita não disse: "Estás a ver, mão esquerda, estou a cuidar de ti. Nunca te esqueças do que estou a fazer por ti." E a minha mão esquerda não disse: "Mão direita, fizeste-me sofrer. Exijo justiça, passa-me cá esse martelo!"»

«O milagre não é caminhar no ar, ou sobre a água, ou sobre o fogo. O verdadeiro milagre é caminhar sobre a terra.»

Thich Nhat Hanh

segunda-feira, 27 de abril de 2009

«Andamos todos cheios de ideias falsas, e fomos torcidos no coração e nos nossos ideais. Fazem-nos crer que “precisamos” de nos enamorar, e que nem podemos viver antes de encontrar a alma gémea... A realidade é a realidade. Estamos neste mundo por algo, e seguramente não é para andar à procura de alguém.»

o tio

quinta-feira, 23 de abril de 2009

que validade tem
o coração que se exalta

por tudo

quando salta
por ti?

sábado, 18 de abril de 2009

Por entre a massa fulminante de gente, olhando para todos os lados, vertendo por todos os lados, perguntava-se como seria possível que a natureza tivesse a sua forma simples mas especial de harmonizar tudo, como acontecia noutros ambientes, como se lembrava de ter ouvido dizer. Era uma questão que há muito a assombrava, espreitando-lhe por cima do ombro, outras vezes pressionando-lhe as omoplatas com as suas mãos etéreas a apenas uns centímetros da sua pele, forçando-a a arquejar. Naquele momento, enquanto se esforçava para evitar os encontrões, não via qualquer tipo de harmonização, só via vultos, espectros com um objectivo definido mas sem estradas, só terra batida, para o alcançar. E ela não se via com o seu objectivo definido, como os biólogos afirmavam. Limitava-se a inclinar-se para ele, a sentir aquele contacto siamês, ombro com ombro, braço com braço, e esperava que ele a guiasse, que não perdesse o contacto. Junto a uma cafetaria pararam e não se lembra de o cérebro ter recebido a informação de que ele tirara um cigarro, mas instantaneamente meteu a mão na bolsa da mala onde guardava o isqueiro e entregou-lho, precisamente quando ele começava já a praguejar com os fósforos que se recusavam a acender. Nunca acendiam. Ultimamente acontecia-lhe com cada vez mais frequência surpreender-se a reproduzir gestos automatizados e a bloquear a informação que normalmente os desencadeava. Havia demasiada informação no ar. Toda a gente tinha informação para passar, como uma droga, como um jogo de basket mas sem um cesto onde se pudesse enterrar um raciocínio ou uma verdade que ficasse sempre connosco. Pequenos rasgões, solavancos, era tudo o que ouvia. Pessoas a passar, encontrões, vozes...

domingo, 29 de março de 2009


terça-feira, 24 de março de 2009

quinta-feira, 19 de março de 2009

B b

De cantilenas e olhos que apenas olham para o centro de si mesmos.
Dos passeios e monólogos e toda a massa cinzenta que lhes habita o coração.

Maiúsculo
- que me esmaga, do topo da sua montanha gélida onde procura planícies de luz.

minúsculo
- que me ondula. A colecção de que fujo, tentanto espreitar pela fechadura.

quarta-feira, 18 de março de 2009

Como o antepassado milenar, duvido por não ver.

Há todo um sistema que fui descobrindo/criando/fixando para responder a comos e porquês. E que agora vacila. Porque uma ascensão - de acordo com os pilares - implicaria pôr os pés nas águas, na esperança de conseguir andar sobre elas. Aquilo que sinto ser verdade pede-me que seja temerária. Pior: livre. Dos pesos que fui acorrentando por não encontrar alternativa melhor.

Tens de te descalçar para que os teus pés fiquem livres para caminhar sobre as águas. E quem me garante sucesso senão uma crença que sempre soube não me dar garantias?

E é neste medo e neste impasse, que ouço vozes - bem reais e muito escutadas - que não se afundaram após remover os sapatos

(a minha crença diz que há sinais)

Duvido por não ver - não vejo por ter medo de tentar abrir os olhos.

domingo, 15 de março de 2009

«Na história da evolução imperou mais a colaboração entre as espécies do que a competição desapiedada pela sobrevivência.»

sábado, 14 de março de 2009

Tenho tendência a fugir de pessoas que são muito simpáticas para mim.

Nunca consigo acreditar nelas.

quinta-feira, 5 de março de 2009

Com as pontas dos dedos tomadas de anseio percorro estradas e linhas imaginárias atenta aos pormenores que me poderão guiar o caminho. Perco-me em perguntas sobre as cores deste entardecer, deste ocaso que se despenha sem aviso, sobre as texturas deste trepidar suave do asfalto que me deixa indecisa. Gostava de tirar esta venda dos olhos, mas é quando os olhos se abrem que as pontes caem e eu preciso destas pontes. Preciso destas pontes para identificar o som dos teus dedos a aproximarem-se, a subtileza do ritmo de todas as coisas que queres de mim. Preciso destas pontes para saber identificar que é um coágulo que me impede de avançar desta vez, uma massa teimosa que me nega o oxigénio e a invisibilidade. Desejo continuar por estes (per)cursos que só existem na minha cabeça pois não os consigo ver mas sou obrigada a levar as mãos aos joelhos, forçar-me a levantar, contornar este obstáculo. Naufraguei numa teia de proporções quânticas, emarinhada e enredada sem obedecer a leis. Tenho de seguir por um qualquer atalho previsível e repetitivo, enfadar-me, bocejar, olhar para o relógio e contar os dias extra e intermináveis no calendário, a marchar sem irreverência. Sei que é apenas uma qualquer birra, tão antiga como o meu nome, que me impede de observar o padrão dos meus dedos entrelaçados e desatar os nós. Não acabaria por se revelar mais simples, tudo somado? Mas olho em volta de visão amordaçada, respiro fundo e sorrio. Há um secreto e inominável esplendor em toda esta entropia plácida, imóvel, que se acumula e alimenta a si própria como uma avalanche. Há um prazer irrevogável em bater o pé em contrariedade, ignorar triunfantemente o desafio que me apresentas, encher a boca de neve e deixar de esbracejar. Um dia os meus dedos poderão percorrer o filão de partículas indivisíveis em memórias que constituem a tua pele e será indiferente ter os olhos abertos ou fechados. Mas para já prefiro deixar as linhas rectas de lado, embrenhar-me na neblina de fim de tarde de que ninguém fala e abandonar-nos ao caos do esquecimento.

sábado, 28 de fevereiro de 2009

sábado, 21 de fevereiro de 2009

Insanity is doing something over and over again, expecting the results to be different.

Albert Einstein

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Dá-me ordem de movimento. Não me conduzas, empurra-me, larga-me e fica a observar-me. À beira do abismo. Com o teu impulso.

Quero levar tudo comigo, a memória de ti gravada numa impressão digital.

Quero levar tudo comigo, um passo dos teus passos a cada esquina, e quero fazer de todo o percurso meu, para nada me pesar.

Faz-te visível em mim, para não deixares de permanecer comigo, mesmo quando eu me abandonar. Longos anos depois de me teres abandonado.

Rios milimétricos a escorrer por entre vagas de memória, sulcando novas sinapses, as âncoras que não me deixarão esquecer-me de ti.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009


Michael Zavros

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Há pessoas que confundem amor com dependência afectiva.

domingo, 1 de fevereiro de 2009


sábado, 31 de janeiro de 2009

os pontos soltos que fui criando
e dispondo por mim
como uma constelação à espera
de ser formada
pequenas luzes dispersas
que me lançaram na queda
por não terem rectas
que me guiassem
encontrei linhas
com laços e nós
desfazendo-se sempre
entre os dedos ansiosos
agora calmos - ainda nus
que apontam os pontos
que julgam estar
por toda a parte

e não te posso querer
só por me ver só

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

O bicho que mais medo suscita dá pelo nome de Espera.

Aqui, hoje, sob uma luz branca de uma cidade imunda, pouso os pés com cuidado, não vá derrapar nos rastos humanos e animais que salpicam as pedras da calçada. Amarro as ideias com cordelinhos coloridos para conseguir uma ordem. Tento terminar nas cores quentes para ir aquecendo ao longo da caminhada. Porém, às vezes, cruza-se tudo a uma velocidade que escapa a radares, e os cordelinhos terminam em solenes nós. Nesses momentos tiros os olhos da calçada e termino estendida entre o lancil e o macadame. Com os pés para o ar e a cabeça em terra.

Sento-me num café comum. Peço uma boémia. Leio umas linhas de um livro. Peço nova boémia. Entorno os olhos sobre as linhas ligeiramente oblíquas. Varro a sala com os pensamentos. Nada de novo, nada de registável. Trivialidades sensaboronas. Levanto-me, empoleirando-me sobre as pernas inseguras e dirijo-me à caixa. Quando tiro a nota da carteira vejo-me reflectida no espelho. Quase não me distingo os contornos. Fixo os objectos que me ladeiam na imagem à minha frente. Todos mantêm a substância e dureza. Só eu me esbato entre as garrafas de martini e porto. Olho a menina que me devolve o troco. Não comenta nada, nem levanta os olhos. Estende apenas a mão para o vazio, para o ponto onde estou paralisada. Deixo-me arrastar pelas botas que levo nos pés e atiro-me para a rua. Encontro a minha direcção por entre a chuva miudinha. A mente já tropeçou várias vezes, mas os pés continuam agarrados à calçada escorregadia. Começo a sentir uma vontade de me largar aos pedaços. De massajar a loucura, de lamber os delírios. Os lábios arrebitam-se nos cantos. Tenho a aparência de uma pessoa feliz. Mas a transparência continua a intensificar-se. Paro em frente de uma montra, encosto de forma desajeitada a cara ao vidro. O odor que me devolve a superfície fria provoca-me uma náusea mal contida. Um cheiro enjoativo de flores frágeis. Passo o nariz pela superfície lisa do braço. Não há dúvida. O odor é meu. Percorro o acervo de informações inúteis guardadas no meu cérebro, tento identificar o cheiro a um nome. A lista é reduzida. Só nomes de flores comuns e sem associações sensoriais, imagens planas de livros escolares. Assim que me afasto da montra levo um empurrão do vento e rebolo com as folhas molhadas. Trinco a língua e espremo uma costela contra uma pedra bicuda. Solto alguns sons por formalidade e tradição e deixo-me ficar ali quieta. Estirada. Passa um transeunte por mim, pisa-me os cabelos de forma indecorosa e não se detém. Minutos passam e nada. Nem me movo nem penso. Uma colmeia de jovens desce a rua. Abrandam no local onde resvalei e caí. Não parecem ter pressa e vão atirando frases uns aos outros. No momento em que me resolvo a pedir uma mãozinha e sacudidela no vestido chega-me uma voz “Não vos cheira a crisântemos?”. Sinto-me elevar com a força dos seus narizes que peneiram o ar. Flutuo a uns palmos do chão. “Talvez”. Voltam-se em batalhão e prosseguem rua abaixo. Volto a poisar na calçada. Fixo as árvores desfocadas e penso, então era isso: Crisântemos.

sábado, 24 de janeiro de 2009

Newton Púlsifer (...) reconhecia que a fé era o cinto de salvação que mantinha a maior parte das pessoas a flutuar através das agitadas águas da Vida. Teria gostado de acreditar num Deus supremo, embora tivesse preferido uma meia hora de conversa com ele, antes de se compromenter, a fim de esclarecer um ou dois pontos. (...)

Bons Augúrios, Neil Gaiman & Terry Pratchett, ed. d'As Masmorras

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

«Quando os dois curiosos se despediram de Sua Excelência, Cândido disse a Martin:
- Ora bem, deveis concordar que este homem é o mais feliz de todos os homens, porque está acima de tudo o que possui.
- Não é bem isso - disse Martin -, mas sim um homem que está aborrecido com o que tem. Platão disse há muito que os melhores estômagos não são os que rejeitam todos os alimentos.
- Mas - disse Cândido - não há prazer em criticar tudo, em reconhecer defeitos onde os outros julgam ver belezas?
- Quer dizer - observou Martin -, em ter prazer em não ter prazer.»

Voltaire, Cândido ou o Optimismo

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

You're asking me questions
'Cause you know what I'll say
But what if I said yes
Would you leave everything behind
Would you fight to make things right?

Would you save yourself from your misery

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

A desconstrução do fígado e apêndices efectua-se a horas certas e inconsequentes. Não parece seguir nenhuma regra ou preceito. Actua em paragens de autocarro, na cama, no primeiro gole de um garoto, a meio de uma palavra. É uma coisinha sem educação e finura. É bruta e brutal e normalmente deixa atrás de si uma confusão de fim de feira. Sacos barulhentos em todos os cantos e uma sensação de melancolia suja

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Respirar ao de leve para que os órgãos inchados não se toquem ao acaso.
Ingerir bebidas quentes para aquecer os espaços vazios e dar cor à pele cinza.
Tomar banho a escaldar para amolecer as arestas.

Cofiou a barba inexistente. Passou, uma vez mais, a mão pelo queixo macio e redondo. Aquela solidão que experimentava nos últimos dias abrira um novo departamento no cérebro.Como um estúdio de música. Isolado, insonorizado, preparado para conter as altas frequências dos seus pensamentos estridentes e histéricos. Começara a assumir a forma de um árbitro de uma partida de ténis, empoleirado numa cadeira afastada do chão. E a ideia de quebrar o som monótono das raquetes parecia impensável. Porque a solidão dá dentadas grandes e arrojadas, tira pedaços como grandes lombos. Os cortes são cirúrgicos, perfeitos. Mas o vazio fica lá e a dor instala-se como um locatário discreto que paga sempre e não ouve música.

domingo, 11 de janeiro de 2009

quero jantar com uma vela que te mostre como te vejo
à luz tímida de uma chama constante
que me chama para o tanto que é o meu todo
ao pé de ti