domingo, 11 de outubro de 2009
[...]Não devia ter-se deixado progressivamente ficar nas águas mornas do silêncio. Mas era tão tentador… Era tão… autêntico. Os colegas viram-no rasgar o oceano insondável passo a passo e não se coibiram de lhe fazer saber o quanto isso lhes desagradava, lembrando-lhe que não lhe fazia bem isolar-se daquela maneira, mas ele já mergulhava e os sons das suas vozes chegavam até ele distorcidas pela densidade da água. Sempre achara que seria perfeitamente capaz de sobreviver incólume a várias semanas na solitária, se alguma vez fosse preso, por isso… Que mais podia fazer? As palavras tinham-se tornado companheiras supérfluas para todas as coisas que tinha visto, [...] todos os estilhaços que desfiguraram todas as pessoas de quem nunca se despedira. As palavras tinham-se tornado mais arsenal de guerra porque nunca, nem que passasse o resto da vida a tentar, iria conseguir mostrar aos seus colegas aqueles lugares de angústia que trilhava dentro de si e o mantinham naquelas trevas. E alguém lhe dissera uma vez que não havia agressividade maior que a agressividade do silêncio, por isso que outra forma melhor de protestar em alto e bom som perante aquelas pessoas que não se importavam, que nem sequer pensavam, inacessíveis nas suas fortalezas de convicções? Talvez as obrigasse a reflectir… Talvez durante esse tempo encontrasse maneira de conter o tumulto estrangulador que se convulsionava no seu âmago, recusando nomes, recusando compreensão, recusando calmantes, agitando num remoinho tudo de que era feito, mudando tudo de sítio, deixando tudo irreconhecível. Tinha medo de abrir a boca para fazer uma tentativa humilde de se projectar no concreto e não se conseguir controlar, começar a abrir rachas, e nunca mais parar. Tinha medo da força da corrente, de ser arrastado e submerso para sempre. Tinha tanto medo de perder a cabeça… roçar a loucura… e descobrir que era irreversível. [...] Podia ser que com o tempo as pessoas entendessem, podia ser que com o tempo as águas baixassem, a terra absorvesse pouco a pouco a magnitude com que fora atingida e ele pudesse voltar a aprender tudo do início, a reconstruir-se a si próprio a partir daqueles pontinhos de derrocada. Mas por agora não. Por agora ainda era demasiado cedo, ainda havia de mais para absorver. Ainda não conseguia processar as más notícias recebidas, não conseguia deixar de visualizar aquelas imagens atrozes dos corpos irreconhecíveis daquilo que fora tão real, não conseguia processar a rapidez, a aleatoridade e o absurdo de tudo. Será que um dia também aquelas imagens lhe iriam parecer fotografias tiradas há cem anos numa outra vida? Quem lhe dera que pudesse esquecer aqueles últimos meses da sua vida, da mesma forma que já quase esquecera o rosto da mulher. Quem lhe dera que fosse assim tão fácil… Quem lhe dera esquecer as coisas más que lhe tinham acontecido ultimamente.[...]
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