terça-feira, 29 de julho de 2008

passa por mim
com tinta e carvão
no algodão que nos cobre
ao nos descobrirmos
tu e eu

passa por mim
com palavras cantadas
pelos teus dedos
nos dias em que o veludo
é tudo
o que não tenho

passa por mim
mesmo que venhas
só de passagem
mesmo com a tua plumagem
escarlate e as penas
que deixas cair
por toda a parte

sábado, 26 de julho de 2008

Porque tu [Cupido] és um puto, e só gostas de brincar; brinca, à vontade! (…) Faz com que um amante ora lance piropos, ora arremesse insultos a uma porta que persiste em permanecer fechada, para acabar por levar a tampa, cantando tristes melodias.

O meu objectivo é utilitário: pretendo extinguir as chamas e que a alma não seja mais escrava da sua droga.

Enquanto é tempo e a angústia que agita o coração é moderada, e se já nos começamos a lamentar, é altura de arrepiar o caminho. Abafar, enquanto são recentes, os germes nocivos de um mal inesperado.

De que natureza é esse objectivo que desejas tanto? – inspecciona-o com um espírito vivo; se é um jugo destinado a magoar-te, não lhe ofereças o pescoço.

O amor está constantemente a fornecer pretextos e alimenta-se dos nossos atrasos; o dia mais adequado para acabar com tudo, é também o que está mais próximo.

Ovídio, Remedia Amoris

domingo, 20 de julho de 2008

a ervilha que eu temo
és tu quem a sente?
se eu assinto a escalada
dessa pilha aclamada
de colchões.

quarta-feira, 2 de julho de 2008

Do you not know that women's religion is in their vulvas?

The Perfumed Garden

terça-feira, 1 de julho de 2008

Sentou-se em frente da sua maçã pulverizada de pesticidas e bojuda o suficiente para que o senso comum lhe dissesse que uma dentada saberia a séc. XXI. Pegou nela sem interesse, rodou-a entre os dedos. Fixou os matizes da sua cor rosácea. Encostou o nariz à pele dura e lisa. Inalou com vigor, nenhum cheiro se desprendeu. Voltou a inalar na certeza de encontrar um resquício, nem que fosse das mãos que a haviam manuseado. Desanimada, largou-a . Não possuía o famoso nez dos perfumistas. Quase instantaneamente ,uma dorzinha subiu-lhe pela traqueia, vibrou-lhe nas cordas vocais, num gemido pouco consistente e saltou-lhe da boca para a mão. Olhou para a sua forma de prisma perfeito. Vinha cheia de arestas. Arestas refulgentes. Pigarreou. Doía-lhe a garganta. Uma lágrima escorreu aventureira sobre a pele magoada. Caiu sobre a maçã. Ainda segurando o prisma opaco, avançou para as gavetas que se amontoavam a um canto. De uma delas retirou uma etiqueta branca, rectangular, corriqueira. Escreveu “dor n.º 37”. Colocou o prisma num frasco e colou-lhe na tampa a etiqueta. Alinhou o frasco com os outros. De entre muitas esta era a mais dura, a com mais arestas, a mais opaca. Formara-se lentamente dentro de si. Quase tinha pena de se ter desprendido dela. Habituara-se àquela dor constante que entre as 20h e as 21h se acentuava, com picos de variação. Mas sabia que caso a afeição não fosse quebrada o seu destino seria uma morte lenta. O prisma cresceria e multiplicaria as suas arestas ocupando os espaços entre os órgãos. Furaria primeiro o intestino, depois o baço, o fígado, o coração, os pulmões seriam os últimos. Até a sua respiração se transformar numa pieira atormentada. Sufocaria de dor. Sabia, porque já havia lido nas posologias dos fármacos para o sofrimento, que os olhos assistiriam a tudo. Rebolariam nas órbitas, vária vezes, num ritual de satélite e perderiam a luz a cada pestanejar. Afagou com os olhos o frasco de compota que lhe guardava a dor. A sua dor que resultava do procurar em corpos a substância de almas. Sentou-se na cadeira mais baixa da divisão. Gostava de olhar, ali de baixo, de muito perto do chão, as suas dores, lá no alto, perto do tecto branco. Os frascos pareciam dissolver-se, fundir-se uns nos outros e avançar sobre si. Estremeceu de antecipação. Reviver todas as dores a um só tempo. Imaginou os frascos partirem-se sobre a sua cabeça, numa carícia sofrida. Assim seria certo que a sua produção incansável de dores terminaria. Acabar-se-íam os frascos. E não mais teria de os coleccionar. Essa obrigação para sempre finda. A libertação que isso traria...esticou o braço até quase cederem as suas juntas e pegou na maçã. Fez pontaria ao último frasco. À mais fresca dor. Ao maior tormento. Lançou a maçã num arco perfeito. O ritmo do seu coração abrandou. O fruto bateu na prateleira, fê-la estremecer. Os frascos entrechocaram-se num tinir de coro suplicante. O nº 37 abeirou-se do seu fim. Saltou da sua contemplação. E num gesto de mão medrosa, empurrou-o para o seu lugar. Os seus lábios moldaram-se com amargura. Como havia ousado pensar que seria assim tão fácil partir uma dor. Que ingénua. As dores são inquebrantáveis. E devem ser coleccionadas.