terça-feira, 20 de abril de 2010

O que leva uma pessoa a autodestruir-se tão completamente? O pensamento dominou-me a partir do momento em que recebi a chamada, e não consegui deixar que a frase vibrasse o resto do dia na minha cabeça enquanto, em frente ao computador, tentava ter os dados todos confirmados antes de avançar. E o que leva uma pessoa a armadilhar de tal forma o seu mapa que se algum dia quisesse voltar atrás já não seria reversível? Pensava em ti naquela tarde cinzenta e chuvosa, modorrenta, se te devia contar ou não, que serias a pessoa certa para me indicares se tudo aquilo era possível, se coincidia, se fazia sentido, velocidade e direcção das correntes, quantos quilómetros, quantos dias, quantos números aleatórios, quantas palavras cheias de nada…
Indivíduo do sexo masculino, caucasiano, 1,78 m, encontrado cerca das 10h30…
Como é que uma pessoa se pode autodestruir tão completamente? Olho para as fotografias, para os sapatos, lembro-me das palavras do relatório tiradas, era capaz de jurar, de um livro de faculdade, recordo-me dos cantos da tua casa, oiço a tua voz (somos felizes) e parece-me que foi ontem… Uma pessoa que aparentemente tem tudo – uma pessoa que aparentemente tem tudo duas vezes!
Não consigo perceber.

Olho em volta. Olho em volta até o olhar voltar a concentrar-se nas fotografias à minha frente no ecrã do computador. Não podia corresponder àquilo que eu recolhera em pastas, dossiers, depoimentos. Não. À minha frente estava um impostor, ninguém podia acreditar que fosse quem fosse. Havia pessoas que levavam uma vida inteira para conseguirem ter o que aquele impostor esmagado entre rochas e folhas de papel tinha. Tinha tudo para ser feliz. [...]

sábado, 3 de abril de 2010

Somos felizes…, ouço-te dizer numa voz débil que reflectia a luz por cima das nossas cabeças. Só pode ter acontecido alguma coisa muito grave, ele não levou nada a não ser uns trocos e as chaves de casa, e já passou este tempo todo e nada, não percebo para que é que são todas estas perguntas…
Este tipo de acontecimentos costuma ser desencadeado por algo fora do comum, ouço o meu colega num tom impassível que ele julgava profissional e ensaiara em inúmeros episódios anteriores. Não notou nada de invulgar nos dias antes?
Suspiro imperceptivelmente, dou meia volta, encaro a parede, exasperado, em busca de inspiração, baixo a cabeça para os papéis que permanecem nas minhas mãos.
Nada, nada, nada… Problemas no trabalho, problemas familiares? Alguém que lhe quisesse fazer mal?
Nada.
Alguma diferença de comportamento, problemas com álcool, drogas, jogo, dívidas, saúde, alguma coisa fora do normal – nada, nada, nada…
Somos felizes…
Cai o silêncio durante uns momentos. Do ponto em que estou ao fundo da sala encaro-te pela primeira vez como se te quisesse devolver toda aquela informação a ricochetear pelas quatro paredes.
Então o que é que nos estás a esconder?, inclino a cabeça para a direita, enrolo o canto direito dos papéis que seguro, dou uns passos antes de me aperceber que já desviaste o olhar, outras vozes sobrepuseram-se.
Conte lá então do princípio como é que tudo aconteceu…, a entoação indulgente, paternalista.
Não há muito para contar na realidade. Era domingo, um domingo igual aos outros, a seguir ao jantar ele disse que ia lá abaixo ao café comprar pastilhas elásticas…
Os risos escarninhos interromperam-te, pastilhas elásticas? Ele estava a tentar deixar de fumar, pedes desculpa, ele vai-se embora e tu é que ficas a pedir desculpas por ele.
O que é que nos estás a esconder?
Sacudo os papéis em cima da mesa com ruído, fito-te envergando uma expressão neutra como se não te estivesse a ver. Lembro-me que ergueste o olhar, sequiosa, à espera que eu te pudesse salvar, na esperança de que fosse só uma questão de espera. Todo o teu corpo tinha sido formatado daquela maneira, para exibir aqueles movimentos. Estava na altura de dar início à desformatação, para que pudesses ver as coisas como elas são na realidade.