domingo, 7 de novembro de 2010

I dreamed surgery couldn't fix me

domingo, 1 de agosto de 2010

[...]
Parece que nos quer devorar… comentei.
Desligaste a lanterna bruscamente e fitaste-me em silêncio.
Então?
Aguentei o teu olhar antes de ceder e afastar-me do poço em passo lento e cabisbaixo.
Não faço a mínima ideia do que significam, respondi de muito longe.
Nada disto? e voltaste a abrir os braços como se toda aquela tarde insólita pudesse caber no abraço que lhe quisesses dar.
Estavas a ficar tão pequeno…
Sabes, ouvi-te da tua distância, às vezes, quando uma pessoa não quer muito ser encontrada…
Tenho tantas saudades dele… murmurei para mim esperando conter a mágoa sob a pele cicatrizada à força dos muitos quilómetros já caminhados. Quase ansiava pelo confronto, mas as forças vacilavam-me, os cortes insistiam em abrir. Levei o polegar à boca para estancar o sangue.
O quê? coxeaste tu atrás de mim, contemplando não sem alguma estranheza o meu gesto infantil. Sabes, às vezes temos de saber quando parar. E paraste, levemente ofegante. Era isso que dizia a mensagem, não era? Eram as coordenadas para irmos para casa… [...]

sábado, 17 de julho de 2010

Tanto podia ser um ano, dois ou uma década. Bebo. Devaneio. Perco-me. Horas tardias. Sorrisos fugazes. Refugio-me no meu tamanho. Finjo que nada aconteceu. Horas turvas. Bebo mais um pouco. (Sorrio.) Todos caímos enfim no esquecimento.

domingo, 16 de maio de 2010

It gets easier each time.
Tomorrow I won't tell
If you were a memory
Or just practice

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Eu que sou de madeira encosto-me constantemente a palavras de vidro, que se partem.

terça-feira, 20 de abril de 2010

O que leva uma pessoa a autodestruir-se tão completamente? O pensamento dominou-me a partir do momento em que recebi a chamada, e não consegui deixar que a frase vibrasse o resto do dia na minha cabeça enquanto, em frente ao computador, tentava ter os dados todos confirmados antes de avançar. E o que leva uma pessoa a armadilhar de tal forma o seu mapa que se algum dia quisesse voltar atrás já não seria reversível? Pensava em ti naquela tarde cinzenta e chuvosa, modorrenta, se te devia contar ou não, que serias a pessoa certa para me indicares se tudo aquilo era possível, se coincidia, se fazia sentido, velocidade e direcção das correntes, quantos quilómetros, quantos dias, quantos números aleatórios, quantas palavras cheias de nada…
Indivíduo do sexo masculino, caucasiano, 1,78 m, encontrado cerca das 10h30…
Como é que uma pessoa se pode autodestruir tão completamente? Olho para as fotografias, para os sapatos, lembro-me das palavras do relatório tiradas, era capaz de jurar, de um livro de faculdade, recordo-me dos cantos da tua casa, oiço a tua voz (somos felizes) e parece-me que foi ontem… Uma pessoa que aparentemente tem tudo – uma pessoa que aparentemente tem tudo duas vezes!
Não consigo perceber.

Olho em volta. Olho em volta até o olhar voltar a concentrar-se nas fotografias à minha frente no ecrã do computador. Não podia corresponder àquilo que eu recolhera em pastas, dossiers, depoimentos. Não. À minha frente estava um impostor, ninguém podia acreditar que fosse quem fosse. Havia pessoas que levavam uma vida inteira para conseguirem ter o que aquele impostor esmagado entre rochas e folhas de papel tinha. Tinha tudo para ser feliz. [...]

sábado, 3 de abril de 2010

Somos felizes…, ouço-te dizer numa voz débil que reflectia a luz por cima das nossas cabeças. Só pode ter acontecido alguma coisa muito grave, ele não levou nada a não ser uns trocos e as chaves de casa, e já passou este tempo todo e nada, não percebo para que é que são todas estas perguntas…
Este tipo de acontecimentos costuma ser desencadeado por algo fora do comum, ouço o meu colega num tom impassível que ele julgava profissional e ensaiara em inúmeros episódios anteriores. Não notou nada de invulgar nos dias antes?
Suspiro imperceptivelmente, dou meia volta, encaro a parede, exasperado, em busca de inspiração, baixo a cabeça para os papéis que permanecem nas minhas mãos.
Nada, nada, nada… Problemas no trabalho, problemas familiares? Alguém que lhe quisesse fazer mal?
Nada.
Alguma diferença de comportamento, problemas com álcool, drogas, jogo, dívidas, saúde, alguma coisa fora do normal – nada, nada, nada…
Somos felizes…
Cai o silêncio durante uns momentos. Do ponto em que estou ao fundo da sala encaro-te pela primeira vez como se te quisesse devolver toda aquela informação a ricochetear pelas quatro paredes.
Então o que é que nos estás a esconder?, inclino a cabeça para a direita, enrolo o canto direito dos papéis que seguro, dou uns passos antes de me aperceber que já desviaste o olhar, outras vozes sobrepuseram-se.
Conte lá então do princípio como é que tudo aconteceu…, a entoação indulgente, paternalista.
Não há muito para contar na realidade. Era domingo, um domingo igual aos outros, a seguir ao jantar ele disse que ia lá abaixo ao café comprar pastilhas elásticas…
Os risos escarninhos interromperam-te, pastilhas elásticas? Ele estava a tentar deixar de fumar, pedes desculpa, ele vai-se embora e tu é que ficas a pedir desculpas por ele.
O que é que nos estás a esconder?
Sacudo os papéis em cima da mesa com ruído, fito-te envergando uma expressão neutra como se não te estivesse a ver. Lembro-me que ergueste o olhar, sequiosa, à espera que eu te pudesse salvar, na esperança de que fosse só uma questão de espera. Todo o teu corpo tinha sido formatado daquela maneira, para exibir aqueles movimentos. Estava na altura de dar início à desformatação, para que pudesses ver as coisas como elas são na realidade.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Graças a Deus tenho imensos amigos que desde a separação se preocupam comigo, me telefonam, me convidam para o cinema, para jantar, para concertos, me tocam à porta se me julgam sozinha, me enchem a sala de risos e fumo de modo que depois, ao saírem, me basta despejar os cinzeiros, levar os copos para a cozinha, abrir a janela derivado ao cheiro do tabaco, endireitar os tapetes, apagar a luz, e ficar na poltrona a olhar os prédios fronteiros, de joelhos contra a boca enquanto a manhã, o que deve ser a manhã, me ajuda a descobrir na alcatifa o círculo negro de uma nódoa e no espelho marroquino qualquer coisa na minha cara a que me agradaria chamar um sorriso. Como graças a Deus tenho imensos amigos claro que é um sorriso. Além do mais sou alegre, gosto de viver, nunca precisei de pastilhas contra a tristeza para nada, se por acaso ninguém pode vir tenho a minha música, os meus livros, cartas a que devia ter respondido há séculos, envelopes de fotografias à espera que as coloque no álbum, no lugar de onde as tirei as do meu marido, nós dois na praia, nós dois em Madrid, nós dois já calados como nos últimos meses, ele aborrecido comigo, ele indiferente, ele distante, saí de casa mais cedo para que fizesse a mala à vontade, ao fim da tarde nem uma camisa na gaveta, nem sequer o cheiro dele, nem um bilhete, nada, andei no corredor um bocado a abrir armários, pensei que dali a nada voltava, tive saudades, apeteceu-me chorar mas graças a Deus tenho imensos amigos, sou alegre, nunca precisei de pastilhas contra a tristeza para nada, de forma que pus um disco na aparelhagem e comi na cozinha, o apartamento tão quieto, ninguém a mudar-me o canal da televisão e a deixar-me a tampa da sanita para cima, a roubar-me metade dos lençóis, nenhum floco de espuma de barbear no lavatório, tudo limpo, arrumado, uma paz de câmara mortuária, as duas mesas de cabeceira para mim, lugar de sobra para os meus vestidos de verão, a cova no sofá do corpo dele e eu com vontade de afagar a cova e nisto, felizmente, a campainha da porta e dois amigos meus e risos e fumo uma, por assim dizer, melancolia que passa depressa, logo ao segundo uísque, levada por uma anedota ou os bilhetes para um concerto no sábado que me apetece imenso, música brasileira óptimo, depois do concerto uma discoteca, um bar, as atenções do amigo de um amigo a tratar-me como o meu marido não me tratava, acender-me os cigarros, achar as minhas opiniões interessantíssimas, acompanhar-me até aqui, explicar-lhe que estou cansada, tenho sono, talvez outro dia, tirar-lhe delicadamente a mão do meu joelho, virar um tudo nada a cara à despedida para que não me beije na boca, limpar a bochecha com as costas da mão sem que ele veja, descalçar-me no elevador porque me dói o pé, instalar-me na cova do sofá maior do que eu ao lado da cova do meu tamanho, lembrar-me que amanhã é domingo, um almoço em Tróia, as crianças dos outros a pedirem gelados, maridos iguais ao meu de nariz no jornal, chegar à varanda e o silêncio da rua, uma enfiada de automóveis parados, uma enfiada de árvores, um cão a farejar pneus e a desaparecer numa esquina, agrada-me este bairro com tudo pertíssimo até o cabeleireiro, o homem do talho conhece-me de pequena
- Menina
a minha tia, quase da minha idade, mora na praceta acolá, falamos imenso, damo-nos lindamente, ela separada também e ainda bonita, um senhor casado visita-a à tarde a olhar à volta antes de entrar no prédio, agrada-me este bairro com tudo pertíssimo, supermercado, lojas, correio, repartição de finanças, a esquadra da polícia, tudo pertíssimo excepto o meu marido, não é que me faça falta, não é que precise dele, estou satisfeita assim, despejo os cinzeiros, levo os copos para a cozinha, abro a janela derivado ao cheiro do tabaco, meto os joelhos à boca e fico aqui à espera que o amigo de um amigo, que o telefone, que a porta, com ganas de farejar os pneus dos carros e me sumir numa esquina.

António Lobo Antunes, Segundo Livro de Crónicas

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Não me estás a mentir?
Aquela pergunta inquiria tanto mais. Nela ouvia o arquejar da pessoa a vir à tona – o arquejar da pessoa que acorda de um pesadelo e se agarra à cabeceira da cama sem saber onde está. Esse segredo que eu conhecia trouxe-me uma angústia que me paralisou nos instantes em que te via cruzar os braços e os teus olhos coreografam uma valsa no vazio atrás de mim, quase à espera de descobrir uma nova pista por cima dos meus ombros. Não havia nada para trás de mim.
Não.
Não, não te estou a esconder nada.
Comprimiste os lábios e assentiste. Mas tudo aquilo também fazia parte da coreografia, já havia sido ensaiado milhares de vezes e persistia no código comum a todas as línguas extintas despertas dos escombros. Era aquilo que se esperava de ti.
Acabou?
Espero que o pano caia, que sorrias de alívio por poderes encerrar o assunto com o silêncio de uma pedra tumular, mas vejo-te morder o lábio, todo o teu rosto fechar-se quando as lágrimas começam a cair sem ruído e só aí, só aí sei que durante todo este imenso tempo – que durante todo este imenso labirinto de fome – a tua interrogação era genuína.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Hoje acordei sobressaltada com um silvar de gatos assanhados a rasgar os meus tímpanos. Tive de me meter debaixo de um duche de água gelada para acalmar os ânimos. Sendo que o meu corpo é um t0 atravancado, não posso permitir que façam de mim um ringue de zaragatas. Fiquei o dia todo a magicar que tipo de latinhas gourmet poderia oferecer às minhas partes, fiquei indecisa entre: pavo e pollo

Desconfio que as minhas partes ainda não chegaram a qualquer tipo de acordo. Faltam sempre às reuniões marcadas para uma reconciliação. Começo a ficar enervada com tanto desrespeito

Já esgotei as caixas de curitas do mini-mercado da rua. Quando estou distraída fico colada ao sofá, às cortinas. No outro dia fui mesmo arrastada uns metros por um casaco esvoaçante de uma adolescente

Acordei com dores ainda frescas na pele. Os lençóis começam a apresentar linhas confusas de sangue esborratado. Se continuo a rasgar a pele deste modo terei de comprar uma sobresselente. Talvez uma sardenta me assente bem.

Desde que uma das minhas partes resolveu começar a agir sem a minha permissão por escrito tenho tido problemas. Noites em claro, dores nos ossos, olhos opacos, cabelo murcho. A minha parte cumpridora ficou confusa com a ousadia com que se ignoraram as burocracias. Indignada e levemente amuada. Embarcou numa greve que implica uma descoordenação dos pés, que agora tropeçam em superfícies planas, provocando-me sérios casos de pele lascada.

Olho para a louça azul da sanita. Ajoelhada entre as pocinhas de água formadas pelo esguichar do chuveiro furado, com a mão esquerda seguro o cabelo e com a direita meto um dedo na boca. O meu corpo sofre uma breve convulsão. Insisto. Nova convulsão. Insisto. Nova réplica. Os joelhos já começam a estalar. E a cara fica mapeada por pequenos vasos vermelhuscos. Os olhos estão cobertos por uma fina película aguada. A tentativa de vomitar o meu eu falhou, pela quinta vez nesta semana. Já começa a saber a derrota, esta inutilidade dos meus dedos.

Deixo crescer o cabelo para adiar decisões. Porém, o cabelo começa a ficar demasiado longo e a formar nós difíceis de desembaraçar. Vou-me afeiçoando aos nós, e já me custa desfazê-los de forma impiedosa. Vou deixando que se acumulem em diversos pontos da minha cabeça. Quase consigo lembrar-me das datas de cada um deles. Reconheço os novos, acaricio os antigos. Não tenho coragem de pegar numa tesoura fininha, discreta, para não assustar os fios de cabelo, e decepar a confusão que se vai emaranhando na minha melena. A cada nó que não corto, logo outro surge e a tesoura vai diminuindo de tamanho. Relutante e medrosa