terça-feira, 23 de setembro de 2008

Amarrava com firmeza as joelheiras à volta das dores. Apertava bem, quase até cortar a circulação das suas pernas espinafradas. Suspirou com enfado e para preencher o silêncio da casa vazia. Dirigiu o olhar para a mesa desarrumada e para os papéis rasgados meticulosamente sobre ela pousados em forma de puzzle mental. O joelho do lado direito rangeu longamente e fê-la deslocar-se para o assento mais próximo. Acontece que era um sofá aveludado e propício a posições descontraídas do corpo. Atirou o corpo com mestria para cima das almofadas bem cuidadas do sofá. Soltou o segundo suspiro do dia e ali ficou. Como se tornara neste poço de osteoporoses radiografáveis? Só lhe vinham à cabeça tiradas de romances da Jane Austen. Por momentos, era Emma. Sacudiu os cabelos mal pintados e tentou aplicar-se um estalo dramático. A mão falhou por 2 mm. Não havia por que insistir, simplesmente não tinha estofo de heroína. Esse era o cerne do seu erro. Crer em algo que nunca fora. Girou vários pensamentos entre as mãos e decidiu-se pelas lembranças. Lembranças das quedas desastradas no chão de tacos da sua casa de toda vida. Tentara alcatifá-la para minorar as suas dores e consequências, mas essa medida só levou a um nível de cotão aumentado que se acumulava entre as ligaduras que trocava todos os dias. Ainda recordava a primeira, a que resultara numa mancha violácea que só à força de muito hirodoide desaparecera. O primeiro amor não correspondido. Desde então, aprendeu a cair de modo mais suave. Minava o seu esquema a emotividade dessas quedas insuspeitadas, sempre bruscas, fintando o seu bom senso. Os anos e as desilusões haviam-lhe desfeito as rótulas. Nunca nos livros escolares ou folhetos dos centros de saúde lera advertências ou curas para o seu mal. Tivera de improvisar toda uma teoria e pragmática para este seu caso. Tomara-lhe tempo em demasia, que ia retirando às matérias mundanas e aos assuntos que enchiam a boca da vizinhança. Nem quando lhe diagnosticaram fragilidade crónica das rótulas pestanejara. Uma vida pontilhada de quedas amortecidas pelos joelhos herdados da sua tia-avó Estrelinha. Caía sempre de forma pia, de joelhos.

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