quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Graças a Deus tenho imensos amigos que desde a separação se preocupam comigo, me telefonam, me convidam para o cinema, para jantar, para concertos, me tocam à porta se me julgam sozinha, me enchem a sala de risos e fumo de modo que depois, ao saírem, me basta despejar os cinzeiros, levar os copos para a cozinha, abrir a janela derivado ao cheiro do tabaco, endireitar os tapetes, apagar a luz, e ficar na poltrona a olhar os prédios fronteiros, de joelhos contra a boca enquanto a manhã, o que deve ser a manhã, me ajuda a descobrir na alcatifa o círculo negro de uma nódoa e no espelho marroquino qualquer coisa na minha cara a que me agradaria chamar um sorriso. Como graças a Deus tenho imensos amigos claro que é um sorriso. Além do mais sou alegre, gosto de viver, nunca precisei de pastilhas contra a tristeza para nada, se por acaso ninguém pode vir tenho a minha música, os meus livros, cartas a que devia ter respondido há séculos, envelopes de fotografias à espera que as coloque no álbum, no lugar de onde as tirei as do meu marido, nós dois na praia, nós dois em Madrid, nós dois já calados como nos últimos meses, ele aborrecido comigo, ele indiferente, ele distante, saí de casa mais cedo para que fizesse a mala à vontade, ao fim da tarde nem uma camisa na gaveta, nem sequer o cheiro dele, nem um bilhete, nada, andei no corredor um bocado a abrir armários, pensei que dali a nada voltava, tive saudades, apeteceu-me chorar mas graças a Deus tenho imensos amigos, sou alegre, nunca precisei de pastilhas contra a tristeza para nada, de forma que pus um disco na aparelhagem e comi na cozinha, o apartamento tão quieto, ninguém a mudar-me o canal da televisão e a deixar-me a tampa da sanita para cima, a roubar-me metade dos lençóis, nenhum floco de espuma de barbear no lavatório, tudo limpo, arrumado, uma paz de câmara mortuária, as duas mesas de cabeceira para mim, lugar de sobra para os meus vestidos de verão, a cova no sofá do corpo dele e eu com vontade de afagar a cova e nisto, felizmente, a campainha da porta e dois amigos meus e risos e fumo uma, por assim dizer, melancolia que passa depressa, logo ao segundo uísque, levada por uma anedota ou os bilhetes para um concerto no sábado que me apetece imenso, música brasileira óptimo, depois do concerto uma discoteca, um bar, as atenções do amigo de um amigo a tratar-me como o meu marido não me tratava, acender-me os cigarros, achar as minhas opiniões interessantíssimas, acompanhar-me até aqui, explicar-lhe que estou cansada, tenho sono, talvez outro dia, tirar-lhe delicadamente a mão do meu joelho, virar um tudo nada a cara à despedida para que não me beije na boca, limpar a bochecha com as costas da mão sem que ele veja, descalçar-me no elevador porque me dói o pé, instalar-me na cova do sofá maior do que eu ao lado da cova do meu tamanho, lembrar-me que amanhã é domingo, um almoço em Tróia, as crianças dos outros a pedirem gelados, maridos iguais ao meu de nariz no jornal, chegar à varanda e o silêncio da rua, uma enfiada de automóveis parados, uma enfiada de árvores, um cão a farejar pneus e a desaparecer numa esquina, agrada-me este bairro com tudo pertíssimo até o cabeleireiro, o homem do talho conhece-me de pequena
- Menina
a minha tia, quase da minha idade, mora na praceta acolá, falamos imenso, damo-nos lindamente, ela separada também e ainda bonita, um senhor casado visita-a à tarde a olhar à volta antes de entrar no prédio, agrada-me este bairro com tudo pertíssimo, supermercado, lojas, correio, repartição de finanças, a esquadra da polícia, tudo pertíssimo excepto o meu marido, não é que me faça falta, não é que precise dele, estou satisfeita assim, despejo os cinzeiros, levo os copos para a cozinha, abro a janela derivado ao cheiro do tabaco, meto os joelhos à boca e fico aqui à espera que o amigo de um amigo, que o telefone, que a porta, com ganas de farejar os pneus dos carros e me sumir numa esquina.

António Lobo Antunes, Segundo Livro de Crónicas

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Não me estás a mentir?
Aquela pergunta inquiria tanto mais. Nela ouvia o arquejar da pessoa a vir à tona – o arquejar da pessoa que acorda de um pesadelo e se agarra à cabeceira da cama sem saber onde está. Esse segredo que eu conhecia trouxe-me uma angústia que me paralisou nos instantes em que te via cruzar os braços e os teus olhos coreografam uma valsa no vazio atrás de mim, quase à espera de descobrir uma nova pista por cima dos meus ombros. Não havia nada para trás de mim.
Não.
Não, não te estou a esconder nada.
Comprimiste os lábios e assentiste. Mas tudo aquilo também fazia parte da coreografia, já havia sido ensaiado milhares de vezes e persistia no código comum a todas as línguas extintas despertas dos escombros. Era aquilo que se esperava de ti.
Acabou?
Espero que o pano caia, que sorrias de alívio por poderes encerrar o assunto com o silêncio de uma pedra tumular, mas vejo-te morder o lábio, todo o teu rosto fechar-se quando as lágrimas começam a cair sem ruído e só aí, só aí sei que durante todo este imenso tempo – que durante todo este imenso labirinto de fome – a tua interrogação era genuína.